segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Entreatos

Sábado. Manhã. Dia de ficar com o Radamés. Um diálogo.

- Pai, sabia que você não precisa ficar fazendo essas coisas de pai pra mim?
- Como assim, coisas de pai?
- Isso. Me trazer na praia, jogar bola comigo. É que você não gosta muito, dá pra ver.
- Gosto sim. Gosto tanto que faço. Por que você não quer deixar eu fazer isso?
- Porque isso o Marcelo faz e faz melhor que você. Ele até sabe fazer embaixadinha. Gosto mais quando você faz aquelas outras coisas.
- Que outras coisas?
- Me levar no cinema, no Mc Donald’s, no teatrinho. Ler aqueles livros. Aí você não precisa ficar fazendo essas coisas de pai, entendeu? Mas eu vou continuar te chamando de pai, entendeu?
- E o Marcelo? Você vai chamar ele de quê? Porque agora ele ta lá com vocês.
- Ué. Vou chamar ele de Marcelo. Mas ele faz essas coisas de pai melhor que você.
- Ah, sim. Você viu o DVD que eu te dei?
- Vi. Fiquei com pena do Simba quando o pai dele morreu.
- E o que você achou do desenho?
- Mais ou menos. Muita música. Mas eu acho que gostei. Mas eu também gosto de ver Naruto. Sabia que um dia eu perguntei à mamãe por que que vocês não eram casados se tinham filho?
- E o que ela disse?
- Que você só ama o seu umbigo. Háhá. Achei tão engraçado amar o umbigo.
- E o que você acha?
- Acho engraçado amar o umbigo, háhá...
- Não disso. O que você acha do que ela disse, você acha que eu não amo ninguém?
- Sei lá. Mas eu acho que você me ama. Porque você é meu pai, né?
- Eu te amo.
- Viu? Você não sabe fazer coisa de pai. Pai não fica falando isso, eu te amo.
- E o que mais a sua mãe falou?
- Que foi culpa sua eu ter esse nome esquisito. Disse que teve vontade de te dar na cara. Que o meu nome ia ser Felipe. E que você tinha mania de óspera.
- Ópera. É ópera que se diz. Mas você não gosta do seu nome?
- Sei lá. Depende. Tem vez que eu gosto. Mas tem vez que não.
- E que nome você queria ter?
- Naruto.

O que ele pensava enquanto o casal de amigos chegava na porta do cinema ao mesmo tempo que – surreal – um auto-falante tocava Nessum Dorma e enchia o centro da cidade com a voz de Aretha Franklin.

Será que eles sabem o que é a beleza? Por que que me dói tanto ouvir essa música? Será que é porque eu sei que a princesa Turandot não diz o verdadeiro nome de Calaf, mas sim “Amor”? Será que eles se amam?
Ou será que o que dói em mim é a voz de Aretha? Dizem que ela só teve oito minutos para aprender a música e cantar ao vivo. Essa voz preta, desmedida, chega a ser indecorosa. Por que que ela fica gritando All’alba vinceró! Vinceró!Vinceró! Pela manhã vencerei...Tão bonito “os beijos que quebrarão o silêncio que te faz minha”. Nessum Dorma. Ninguém durma.
Será que se eu só os abraçar eles vão saber o que está acontecendo? Se eu os abraçar e, chorando, beijar-lhes a boca, será que eles vão entender que o beijo é o desespero de quem não pode suportar a beleza disso? Eles vão entender que os olho agora como uma criança náufraga dos pais em shopping na semana do Natal olha para os adultos ao redor?
Será que Aretha Franklin sofre? Engraçado, ela canta com o corpo. Mas os olhos não estão cantando a mesma música do resto do corpo enorme. E é tão, tão bonito quando ela canta...Parece até o verso da Cecília: Não tenho inveja às cigarras, também vou morrer de cantar.
E, por que diabos, alguém põe Nessum Dorma para tocar nessa cidade quente, em plena quarta-feira de um dezembro sujo?

Chope, os três. Quarta-feira depois do filme. Nada surreal. Um diálogo (di é dois?).

- Caramba, aquela mulher é maluca. Aquela hora que ela fica tocando o braço da loira e manda ela fechar os olhos...uau...
- Super atriz mesmo. Acredita que ela já ganhou um Oscar aparecendo só oito minutos num filme?
- É por isso que eu não levo o Oscar a sério. Oito minutos dá pra fazer alguma coisa?
- Não seja por isso, quarenta segundos e já dá pra fazer um filho...
- Engraçadinho...Isso diz bastante sobre a nossa vida sexual...
-Hum...você não reclama na hora....
- Vocês podem me poupar dos detalhes? Ainda mais nessa minha fase monástica.
- Eu não entendo porque você ta sozinho...Cheio de mulher desesperada por aí...
- Vai ver é porque ele não quer uma desesperada...
- Sinceramente, agora não estou querendo nada....Fechado. Balanço. Se pudesse andaria com uma plaquinha: Só se aproxime se quiser uma transa rápida, não sentimental, mas honesta.
- Então, meu amigo, não sei porque você está sozinho....todo mundo quer o mesmo que você.
- Todo mundo, é?
- Menos eu. Porque você é a dona do meu coração....
- Cafajeste.
- Cafajeste, mas gostoso. E seu filho, como está?
- Lindo. Solar. Se eu acreditasse em Deus ia agradecer todo dia por ele não ter me puxado...
- E a mãe dele?
- Sei lá. Ela só fala comigo entre os dentes. O pior é que não sei porque que ela me odeia. Ela esperava o quê? Quando a gente começou a ficar ela me disse que não esperava muito daquilo porque ainda estava muito ligada no ex e que, além do mais, eu era de Áries e ela de Escorpião, não tinha futuro. Aí agora me olha com cara de donzela deflorada. Fica esfregando na minha cara o marido perfeito que arrumou. E não me perdoa por ter escolhido o nome do menino.
- Também, puta que pariu, Radamés é feio pra cacete. Não dá nem para achar um apelido...Radá, Meme, Dadá...putz.
- Eu não acho feio. Acho bem sonoro.
- Ah, mas você não conta. A sua filha se chama Aletea. Tadinhas dessas crianças. Já pensou se vocês dois tivessem um filho juntos? Putz. Imagina: Funéreo, Mozart Sebastião, Agapito...Parece até o nome da mulher do filme, como é mesmo?
- Sheba.

A amiga deu-lhe de presente de aniversário um livro de poesias. O gato de Chesire. Versos que ele sublinhou com caneta vermelha.

A vida é este soco na cara.
O vento que prenuncia a face contra a porta.
A porta que bate na tangente da pele.
O vidro do espelho nos punhos cerrados.
A vida é esta lágrima sádica.

O que ele pensava enquanto beijava a recém-conhecida. Canto de parede. Boate da zona sul.

Há um gosto além do gosto de bebida que passa pela minha boca e esbarra nas nossas línguas que se engalfinham como se lutassem para matar. O gosto da ausência em mim de uma coisa que não sei o que é e que você não vai poder me dar. Mas, mesmo assim, eu quero que nessa noite você vá para casa comigo e quero entrar no seu corpo como se ele fosse a porta para a saída do prédio que pega fogo, a fumaça invadindo os meus pulmões.
E aí você chega, maquiada, pronta, sorrindo. E nós conversamos e eu tento parecer interessante, descolado, livre. E você tenta parecer interessante, descolada e livre também. E falamos que, não, não sou de curtir muito a noite, ta muito decadente, tudo pasteurizado. E você diz que, não, não votei naquele cara mesmo. E falamos do seu MBA, do IPVA, do meu DOC. E eu digo que o que eu mais queria era beijar você e você pergunta – por que não beija então?
Então línguas brigantes. Eu digo que adorei o seu cheiro, você morde os meus lábios. Minhas mãos tateiam o seu corpo e conseguem sentir os seus mamilos endurecendo como se falassem que estão prontos para a invasão, como se corpos pudessem ser posseiros.
As línguas se enroscam e eu penso no seu corpo nu, nu como eu jamais ficarei e, bem sei, nem você ficará. Mas eu quero entrar em você, escavar você, explodir em você, dizer eu te queroeutequeroeutequero. Eu te quero de mentira. E de manhã, constrangidos, nó vamos falar que, sim, é claro que a gente vai se falar.

Uma página solta na agenda dele

- Ligar para a administradora. Reclamar cobrança dupla.
- Farmácia. Complexo B e camisinha.
- Não esquecer: vistoria.
- Falar com João que o filme é Carruagens de fogo.
A rose is a rose is a rose

Um bilhete velho. Fundo de uma caixa velha.

Filho,

Quando a mamãe briga com você é porque ela quer o seu bem. Se seu pai e eu não deixamos o gatinho ficar é porque a gente sabe que um menino com bronquite não pode ter bicho de pêlo. Mas amanhã você vai ter uma surpresa. Aposto que você nem sabe o que uma iguana.

Um beijinho, meu periquito.
Mamãe.

Uma foto. Mesma caixa.

5 adolescentes de sunga e touca. Braços erguidos. Atrás da foto: Clube esportivo Liberdade. Bicampeonato.
Ele não lembra o nome dos outros 4.

Parênteses

(um dia ele vai acordar no meio da noite com o barulho do vento. E vai lembrar que, quando era criança, achava que o vento saía dele, que ele é que fazia as árvores caírem e as telhas das casas saírem voando. E vai lembrar do medo que sentia de si quando ventava
um dia ele vai levar o filho a uma ópera
um dia ele não vai mais passar na farmácia
um dia ele vai beijar a boca dos amigos
um dia ele vai gritar, no meio da sessão, em um cinema lotado
NESSUM DORMA! NESSUM DORMA!
ALL’ALBA VINCERÓ!
VINCERÓ!
VINCERÓ.

3 comentários:

Vicentini; Luiza. disse...

Caraca! Vc não escreve sempre, mas qd escreve... PQP!
Muito bom! Muito bom...
Adorei as citações dos filmes e músicas.. ficou muito natural, como vc faz isso??
hahahah
Abraço forte!
=)

Anônimo disse...

Levei um tempão pra vir ler este conto, mas, finalmente consegui. Adorei, Marco! Me lembrou tanta coisa que eu já ali antes... Mas me lembrou assim, de um jeito novo, sabe?

Gostei muito, muito mesmo!
Beijão!

Fernanda Maria disse...

Por que é tão difícil de se expressar diante das coisas que realmente mexem com a gente?!?!

Esta deve ser a vigésima vez que leio o seu conto. Tenho muito a comentar, mas é tudo tão profundo!

Moço, só posso dizer que o conto é divino. Parabéns mais uma vez!

Mil beijos!!