domingo, 30 de março de 2008

As pequenas mortes

De volta com os posts. Já não era sem tempo, né? Bem, para celebrar a volta, resolvi publicar o meu conto mais recente. Com vocês, As pequenas mortes.

AS PEQUENAS MORTES
Tudo aconteceu graças a um “Eu preciso te ver agora” que precedeu a um “Nossa, há quanto tempo” e algumas outras frases cujo único sentido era levar àquele momento agora. E os dois sabem que as palavras devem ser abandonadas no já que se fez, espaço dos corpos somente, discursivos, eloqüentes.
E são as bocas sem vocábulos que expressam o que existe neles. Bocas que fazem as vezes de mãos, buscando os espaços que estas, há poucos minutos, percorriam. Bocas que se atiram a cada nesga de pele outrora protegida por roupas e que agora se expõe impudica. Acostumadas ao verbo, em certos momentos, elas, as bocas, ousam um balbucio, uma palavra perdida, um resfolegar. Desejo.
E os dois se lançam um no outro, órfãos de si, se jogam nas formas um do outro com a avidez dos que sabem que só será aquela vez. No rádio, a cantora de muitas oitavas na voz sussurra “I’ll give you everything you even dare to dream” e, se eles tivessem ouvidos para ouvir, saberiam que a frase assume corpo de profecia. Mas já se foi o tempo das predições e, naquele quarto, outra é a música, melodia feita sem notas.
Há quanto tempo eles esperaram pelo já? Meses, talvez. Ou talvez seja outra a medida aqui. Talvez as estações dos corpos sejam medidas pelos meio-sorrisos, pelas frases dúbias, pelas hesitações, pelas fugas que a mente dava quando, em meio a uma reunião do escritório, plantava imagens de línguas, camas e pormenores anatômicos apenas vislumbrados.
Fantasias já não importam. O que eles têm agora é um ao outro, corporificados. Entre suores, enrijecimentos, liquefações, eles sabem que pela primeira vez se encontram de verdade. Pêlos e pele se colam e, se eles pudessem prestar atenção, veriam que belo efeito causam coxas brancas e morenas quando entrelaçadas. E perceberiam também que o cheiro que recende pelo aposento barato é herdeiro de odores antigos, de antigas feitiçarias, de ervas que, mastigadas, levavam bruxas ao vôo.
De quando em quando eles se encaram. E os olhos lampejam as sentenças interditas. “Eu te quis desde o primeiro oi” ou “Você não sabe o que é não conseguir parar de pensar em alguém”. No entanto, o mel é quebrado pela violência com a qual o corpo se expressa. Então, eles falam arranhões, os nós dos dedos rasgando as costas, dentes esgueirando-se por pescoços, mamilos, umbigos. E, quando um engole o calor do outro, olham-se bem nos olhos, pois sabem que presa e predador são conceitos que não se aplicam àquele ecossistema.
O rompimento. Quando carne entra em carne, quando prazer e dor são unos, eles se apóiam no outro. As mãos de um, cravadas nos ombros do outro, querendo se aproximar do pescoço e sufocar aquela presença que vivifica e mata. As mãos do outro apertam a cintura do um, puxam mais para si, como se cavando ainda mais as entranhas se pudesse romper o invólucro do corpo e atingir-se o espírito.
Então o grito de um é o grito do outro. A queda de um no outro. Eles caem. Mortos.

Tudo aconteceu graças a um “Eu não acredito que você teve coragem de me trocar por essa piranha” e o som de um tapa. Correndo, descendo as escadas, a violência de se abrir uma porta. E as palavras abandonadas.
O carro já não é mais familiar como as trinta e seis prestações fizeram parecer. Sentada no banco de couro, ela sente a máquina resfolegar, cavalo selvagem no qual ela monta sem sela. Os pés no acelerador são esporas. Os pneus relincham.
Por que os olhos insistem em se manter secos? Onde as lágrimas que, há milênios, forjam seu gênero, marcando como iguais as que sentem a dor da vida tão profundamente que precisam expurgá-la de dentro, quer seja pelos olhos, quer seja pelo sangue do mênstruo?
Mecânicos, os dedos apertam o botão do rádio, mas os ouvidos não dão conta do homem de voz suave que pede “Deita nesse amor desarrumado”. Se dessem conta, ela saberia que música pode ser adaga. Não dão porque agora ela é o alheamento de si.
E, por estar presa a outro espaço, a amazona se deixa dominar pelo cavalo. Fogoso, ele galopa sem freios, rompe campos de concreto na rodovia que liga a idílica praia dos feriadões à cidade de segunda à sexta no horário comercial. Cascos vibrando, o cavalo abre os ventos, ele, livre, ela, cativa.
São as lágrimas que finalmente chegam ou esta noite está mais escura que as outras? As nuvens realmente cobriram a lua ou são as luzes dos outros ginetes, jogadas nos olhos dela, que eclipsaram tudo a sua volta? Galope mais forte, um prado se abre para a mulher-centauro.
Ah, Dom Quixote, ainda não aprendestes que moinhos não são gigantes e que muretas de contenção não são prados?Uma luz mais forte, agora ela vê a lua. Então é assim?
O cavalo de metal se cala e o grito é dela. A queda dele é a queda dela. Ela cai. Morta.

Tudo aconteceu graças a um “Aproveita que eles estão distraídos brincando e vem comigo”. Na intromissão de seus cinco anos, o menino sabia que tinha que descobrir porque o tio ocultava-lhe assim a própria mãe. Decerto um presente novo para ele. Dos irmãos do pai, era aquele seu favorito, a voz de homem-menino de vinte anos chamando-lhe “Vê cá, moleque, quem é seu tio preferido?”.
Esgueirando-se pelas paredes, lagartixa, ele vai atrás da brincadeira de esconde-esconde que a mãe e o tio vetam a ele. O som dos outro meninos cantando “O anel que tu me deste era vidro e se quebrou” desaparece a medida que, aproximando-se da cozinha, ele ouve os balbucios da mãe que, respirando forte, tem a boca tapada pela mão do tio, como se a quisesse impedir de gritar.
Por que o tio está batendo na mamãezinha? Ele estranha aquela briga dos dois, principalmente quando a mãe tira a mão do tio da boca e cola os próprios lábios nos lábios dele. Por que a mãe levantou a saia e prendeu as pernas em volta do tio, sentada na pia?
Engraçado, parece aquela vez que entrou correndo no quarto dos pais e os pegou brincando de luta. O pai não tinha dito que aquela luta era diferente, que só namorados faziam quando se amavam muito? O tio não era namorado da mãe. “O amor que tu me tinhas era pouco e se acabou”. É como se tudo doesse dentro do corpinho de menino dele.
Correndo, ele se lança fora do campo de batalha. Já sabe o gosto do primeiro combate perdido. Engraçado, vai ficando mais velho a cada passo da carreira. O ar aberto do quintal tem consistência de soco na cara. Os pés cegos tropeçam nas próprias pernas.
O grito vem por causa do susto da queda. “Machucou, meu bebê? Conta pra mamãe onde tá doendo”. Mas como contar que, depois da queda, ele sabe que morreu?

Tudo aconteceu graças a mais um sábado sozinho em casa. Escritores são seres que gostam de solidão, poetas mais ainda. E, sendo assim, ninguém o convidava para um chopinho ou um cinema ou mesmo uma ida ao Maracanã. No apartamento apertado, a duas quadras da praia que ele nunca ia, poeta e palavras se esbofeteiam.
Aliás,palavras não. Palavra. Pois que apenas uma delas faltava para fechar aquele texto sobre a moça que tocava violino como se tocasse cada fio do cabelo do rapaz que amava em segredo. O poema tinha nascido praticamente pronto depois que conhecera a jovem tímida que, livro em punho, lhe pedia um autógrafo, você escreve tudo o que eu sinto. Rubor dos dois. Queria tê-la convidado para um lanche, para quê poesia?
Agora só faltava ela, a palavra. Uma palavra que combinasse com acordes, cordas, música, cabelos. A palavra que daria o ritmo certo à melodia. Uma palavra e ele ia dormir e esquecer que era sábado e que a única canção que ele ouvia era a que escapava pelas paredes finas do prédio, delatando a festa do vizinho.
Por que se escrevem poemas se quase ninguém os lê? O editor não lhe tinha mesmo dito que só publicava os livros dele porque davam prestígio à Casa Editora? O que a mocinha do autógrafo estaria fazendo num sábado à noite? Ela morava no subúrbio, lembrava, com um pai viúvo que implicava com sua mania de ler, afinal “livro não dá camisa a ninguém”. Ela contou-lhe tudo isso de olhos baixos e, quando ele perguntou o nome dela para pôr na dedicatória, ela ficou muito vermelha e sussurrou “Cher”, a falecida mãe adorava cinema, ela que acabou pagando o pato, ele sorri lembrando.
A sua mãe também adorava cinema. Musicais, principalmente. O pai, acadêmico respeitável, achava tudo uma alienação para as massas. Cinema, só o de arte. E assim, entre expressionistas, Bergman, Judy Garland e Liza Minelli, nasceu um poeta. Sozinho, em um sábado, tentando encontrar a última palavra do poema que brotou de uma menina do subúrbio chamada Cher e que gostava dos seus escritos.
E a palavra veio. Era grito. Grito, que óbvio, por que demorara tanto? E a palavra acordava o poema, a palavra estava viva. Ele, nem tanto.