terça-feira, 20 de janeiro de 2009

A primeira lei de Newton

Faça-se a luz, disse o Senhor, e a luz foi feita. Se o brilho primeiro foi o germe de toda Criação, o sol de um janeiro típico, com seus calores infinitos e suas ameaças tempestuosas de fim de tarde, era convite imperativo para um menino e seus sete anos. Sem saber ainda, como todos não sabem àquela idade, que se está insanavelmente preso às ações alheias sobre os nós, Adriano resolvera inaugurar o dia convocando os outros. Porque era assim que sua mãe se referia aos amigos - “Dri, vai brincar com os outros, Dri, se você e os outros arranharem o meu piso...” e porque era assim que eles se referiam a si próprios quando juntos – “Vamos lá, eu, você e os outros”. Duas palmas no portão da frente e uma cabeça descabelada na janela:
- Dona Neuza, o Alex pode sair pra brincar comigo?
- Pode não, Dri. Alex tá de castigo porque ficou de recuperação.

Em Tchekhov vocês verão que isso acontece o tempo todo. Todo um teatro se construindo sobre essa questão. Veja, por exemplo, As três irmãs. Elas passam a peça inteira dizendo que tudo vai mudar quando forem para Moscou. Mas não vão. A Gaivota. Parte das figuras está presa a uma vida que não ama. A fala final de O tio Vânia: sobreviveremos. Ele diz isso, vamos sofrer, nada vai mudar, a vida será sempre a mesma, nós sobreviveremos e quando morrermos seremos reconhecidos. Imobilidade. Percebem?
E ele pensou para si que aquela era a vigésima - sétima aula, do vigésimo - sétimo curso de Introdução à Teoria do Teatro, nos seus vinte e sete anos de carreira na Universidade na qual se graduara, cursara o Mestrado e o Doutorado. A peça que jurou escrever a vida inteira continuava em sua cabeça. Somente.

Canal 83. Uma fada e seu marido fazem seu protegido entrar na história em quadrinhos de seu herói favorito. Já tinha visto aquele. Canal 87. O imperador engraçado virava lhama. Já tinha visto aquele. Canal 88. O menino samurai era banido da aldeia. Já tinha visto aquele. Já tinha visto o do 89, 92, 94. Adriano já tinha visto tudo aquilo, já tinha visto também a mesma expressão esvaziada com a qual a mãe olha o pai na mesa do café e o mesmo ar de desconforto com o qual o pai olha de volta para a mãe. Adriano já tinha visto o que acontecia sempre que a mãe dava aquele suspiro fundo e dizia como se não quisesse que ninguém ouvisse, mas querendo: Ô vida. Adriano já tinha visto o que acontecia quando o pai falava para a mãe, sem olhar para ela: O que foi dessa vez. Adriano já tinha visto as duas portas batendo, a do quarto e a da rua.

Há um mês e dezoito dias que a gorda Janaína só comia folhas, verduras, legumes e grelhados. Os recheados bombons de nozes trocados por cenouras raladinhas e molho de iogurte natural e uma foto de uma mulher magra de biquíni na porta da geladeira. Os refrigerantes e suas bolhas substituídos pelos chás e suas quenturas. As batas largas e os vestidos sem forma cedendo espaço aos vestidos acinturados, às saias curtas e às calças justas. Por enquanto só na imaginação, logo, logo no corpo. Jaílson, que não a assumia porque trabalhava para o pai da namorada, a oficial como ele dizia, Jaílson, que nunca passava o fim de semana com ela porque você sabe, né, Jaílson seria permutado por um nome novo, único ele única ela. Há um mês e dezoito dias que tudo era uma espera.
Como se já esperasse por aquilo, a balança exibe no mostrador digital os números em vermelho. Noventa quilos e duzentos gramas. Os mesmos noventa quilos e duzentos gramas de um mês e dezoito dias atrás. O telefone celular vibrando revela em sua tela uma única letra. J.

Arroz, feijão, salada e bife. Mãe, a gente podia ir na casa da tia Sula na praia. Mas se tiver chovendo muito a gente pode ficar jogando banco imobiliário. Mas o papai pode ir no fim de semana e aí a gente volta só no domingo. Mas ela não brigou comigo. Arroz, feijão, salada e bife. Quando eu acabar posso entrar na piscina. Mas se chover eu saio. Mas se eu ver um raio eu saio. Então, se eu vir um raio eu saio. Ele viajou. Ele tá de castigo. Já li todos. Não tem nada novo passando. Acabou já. Arroz, feijão, salada e bife. Por que que nunca tem peixe. Alergia, acho que tenho isso com salada, olha só. A gente podia ir no cinema. Mas sábado tá muito longe. Você podia me dar o boneco do fogo. Não, aquele é do vento. É igual nada. E se. Arroz, feijão, salada e bife. E maçã.

Os dias eram de lembrar e as noites de não dormir. No sofá escuro da sala escura, Ana e suas muitas rugas. As mãos secas viram as páginas do álbum ensebado por hábito já, maquinais. Três mocinhas com uniforme de gala do Instituto de Educação. Filha minha não trabalha fora. Uma mesa grande e um Natal. Quinze pessoas. Os olhos velhos se focam em uma só, um rapazinho magro, com cabelos ralos e olhos de que vai desmaiar. Guilherme. Filha minha não fica de sem-vergonhice com primo. Uma menina fantasiada de noiva. Por um instante o corpo velho ressente-se de pancadas antigas. Filha minha não se separa do marido. Dois meninos e duas menininhas. Não sou pai de anormal. Foi numa quarta-feira que abraçou o que ia. Um menino e duas meninas. Filha minha não fica grávida de vagabundo. Foi numa terça-feira que abraçou a que tinha saído dela e nunca mais viu. Um menino e uma menina. Não sou pai de bandido. Foi numa sexta-feira que abraçou um caixão. Uma mulher sozinha. Foi num domingo que abraçou uma boneca de pano. Mole. Caída no chão junto com um vidro vazio de comprimidos.

Adriano não gostava do silêncio da hora da novela. Ele não sabia explicar porque, mas parecia que a sala estava vazia, mesmo a mãe e o pai estando sentados ali. Ele não parecia estar ali também. Achava engraçado, mas sempre imaginava um desenho que um dia ia fazer. O nome ia ser Minha família na hora da novela. Ia desenhar ele, o pai e a mãe em frente à TV só que com os olhos virados para dentro, não para fora. Em cima das cabeças ia desenhar esses balões de quadrinhos, que mostram o que as pessoas pensam. No da mãe ia escrever “Acho que não gosto dele”, no do pai “Acho que quero ir embora” e no dele “Por que ninguém conversa comigo?”. Pena que não tinha giz de cera.
O toque do telefone, inesperado, não-convidado, assustou os três. O pai foi mais rápido e com uma cara estranha passou o telefone para mãe dizendo: Seu tio, irmão da sua mãe.
Depois que a mãe desligou o telefone, Adriano descobriu algumas coisas. Que tinha uma bisavó chamada Ana. Que ela tinha acabado de morrer. Que era estranho ter uma bisavó que morria sem tê-la conhecido antes. Porque todos os amigos que tinham bisas falavam de umas velhinhas quietinhas que estavam sentadas na sala desde sempre e que acordavam mortas um dia. Não era assim. E descobriu que iam ao enterro da sua bisa logo de manhã porque o pai tinha que trabalhar e ninguém ia poder ficar com ele.
Quando a mãe o sacudiu cedinho, ele, por um segundo, pensou que fossem à praia. A lembrança da noite esmurrou as esperanças. O cemitério era longe, longe, andou de ônibus e de trem. Nunca tinha andado de metrô e não foi naquele dia que teve sua primeira vez.
Fazia calor, calor, e ele se sentiu mais quente perto das velas da capela minúscula. Um tio magro passou a mão no cabelo dele e disse que sempre quis conhecê-lo. Falou que a velhinha morta era sua mãe, vó da mãe do Adriano. O tio tinha um livro nas mãos, Adriano reparou. O nome era O Jardim das Cerejeiras.
A tia Jana, irmã da mãe, estava lá também. Adriano viu as duas chorarem abraçadas falando que tinham enterrado a mãe delas, vó do Adriano, ali também.
Numa hora em que ninguém estava prestando atenção, o menino chegou perto do caixão da bisavó. Foi uma sensação estranha olhar uma morta, que era da família, e não sentir nada. Quando o Floquinho morreu lembrava que sofrera tanto. A bisa era muito velhinha e, diferente do que as pessoas no velório estavam dizendo, não parecia que ela estava dormindo. Parecia que ela estava parada no caixão, parada só. Imóvel. Fixa.
Depois que enterraram a bisavó dele, Adriano ouviu os coveiros conversando. Um disse: É, amanhã vai fazer calor de novo. Mais sol. E o outro falou: Vai mesmo. Tudo de novo.
E Adriano sentiu doer dentro de si quando se viu repetindo dentro da cabeça: Tudo de novo. De novo. De novo.