quinta-feira, 22 de maio de 2008

O menino e as cinzas

Olá, pessoal...

Um conto recém-escrito para vocês. Fiquem com "O menino e as cinzas"

O menino e as cinzas

Otávio ligou para dizer que não me ama mais. Aliás, não foi exatamente isso, Otávio nunca tinha dito que me amava antes. Meses atrás ele me disse – também via telefone – que gostava de mim e que queria que a gente ficasse junto. A voz através do aparelho, vacilante, tímida como convém a um homem de vinte e poucos anos que se dirige a uma mulher de trinta e tantos disposto a mudar o centro de gravidade da Terra.
Porque foi assim. Otávio passou a ser, depois daquilo, o meu ponto de referência no espaço. O mundo inteiro só fazia sentido depois de filtrado pelas lentes dos óculos de aros finos dele. De repente, eu me via desamparada e feliz, como alguém que, perdido no meio da floresta, encontra um mapa e descobre que não tem a menor noção de cartografia. Por um lado, experimenta-se a dor terrível de saber-se, agora sim, definitivamente perdido. Por outro, se é tomado pelo conforto de que um dia alguém esteve ali, passou pelos mesmos verdes, sentiu o mesmo frio. Alguém ouviu os mesmos sons, os barulhos que a mata faz para espantar intrusos, os ecos indistintos do que pode ser macaco, ave, sombra, fantasmas, duendes. Alguém passou por isso e sobreviveu. Mais ainda, sobreviveu com tanta galhardia que decidiu construir um modelo de salvação para os outros. Alguém desenhou os caminhos para mostrar que, dos ramos e folhas, existe uma saída.
E o meu mapa era Otávio. Suas particularidades me guiavam. As artérias pequeninhas ao lado dos olhos, aparentes na pele tão branca, eram trilhas abertas na minha floresta perdida. A boca, mais fina do que se esperaria de um homem alto, era clareira exposta, pouso de caçadores após noites longas de perseguição. A camiseta era sempre mais curta do que deveria ser. Até o jeito de usar as palavras era uma indicação de por onde eu deveria passar. Porque, na voz de Otávio, certos vocábulos ganhavam inflexão nova. Cidade, por exemplo, é palavra que ele pronuncia como se fosse recluso, como se só ele soubesse o que pode se ocultar nos centros. Adolescente, brigadeiro, fórum, medo. Signos novos, acepções diversas. Eu me conduzia em um mundo novo. Eu. ET.
E a agora Otávio me liga para dizer que não me ama mais. Aliás, não foi exatamente assim. Ele não disse “Eu não te amo mais”. Otávio nunca tinha dito que me amava. Ele deu uma pausa depois do alô, uns cinco segundos, e disse “Sabe (ele adora começar frases com sabe), naquela época que eu falei aquilo eu estava muito confuso. E agora eu pensei bem e vi que eu não quero isso para a minha vida”. Foi assim. Então, ele começou a falar sobre como algumas palavras são difíceis de serem passadas do alemão para o português, se eu não podia ajudá-lo com alguns termos.
Não foi assim tão rápido. Depois que ele falou “isso para a minha vida” eu fiquei muito quieta. Muito mesmo. A ponto de ele pensar que eu não estivesse ali ou não tivesse ouvido, olha só que engraçado. Aí ele perguntou “Você tá aí? Você ta aí” e eu disse “tô”. Ele: Tá tudo bem? Eu: Tá. Ele: Eu só não quero que isso afete a nossa amizade, você é a minha única amiga. Eu: É claro que não vai afetar nada, né, Otávio. Eu te adoro. Eu sabia que ele precisava ouvir algo forte, como um café que a gente dá para alguém que está bêbado. Continuei: “A gente faz muita confusão nessa idade. Aí ele disse “Acho que isso que você falou é uma verdade”. E só então falou sobre a língua alemã.
Eu traduzi os termos que ele pedia, eu aleguei sono e pedi para desligar. Encerrei a ligação, mas não tirei o aparelho do ouvido. Fique ali, parada, o zumbido do sinal de linha ecoando como um mantra pressago. Martelo, bigorna e estribo bombardeados pelo tuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu contínuo. Dizem que quem medita consegue calar todas as vozes dentro de si e ouvir a música que o mundo toca. Os que conseguiram – ou dizem ter conseguido – sempre se referem a ela como uma vibração apenas, um zunido igual ao do vento. Deve lembrar o sinal de linha do telefone eu acho. Tuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu. Eu pensando no que ele disse, o “eu não quero isso para a minha vida”.
“Isso” era eu? Ou era apenas a situação e eu, que sempre tive uma tendência à vitimização, segunda filha em um grupo de três, a que não é, achei que ele estivesse se referindo a mim como “isso”. Imediatamente eu lembrei do macete que o professor de português da sétima série tinha ensinado para que a gente descobrisse se uma oração subordinada era substantiva. Bastava trocar a oração por “isso”. Eu, substantivo. O substantivo dá nome às coisas. Às coisas. Subordinação.
Otávio ligou para dizer que não me ama. Um poeta me perguntou se eu não achava que ele banalizava a palavra amor por usá-la demais em seus textos. Eu respondi que, com tal palavra, há que se ter cautela. Aliás, Otávio nunca disse que me amava. Aliás, Otávio nunca nem me beijou. Sem beijar há romance?Lembrei das aulas de ciências na escola. Pseudópodos. Falsos pés. Estratégia das células para englobar alimentos. Pseudo-romance o nosso. Estratégia para englobar o quê? Não. Não tem como ser falso o que deixa marcas.
Agora fico pensando em coisas e frases que eu poderia ter usado e não usei. Eu podia ter dito “Como você ousa me usar, me deixar apaixonada, me iludir”. Bem heroína de ópera. Trágica. Podia ter cortado a garganta dele só com palavras. Podia ter dito moleque, insensível, monstro até. Podia ter dito até “vil”!
Ou então podia ter me matado. Madame Butterfly. Otávio odeia ópera. Mas meus olhos muito azuis e inquietos não são olhos de quem se mata. É só observar. Virginia Woolf, Ana C., Sylvia Plath. Nenhuma tinha olhos maiores que o rosto. Os meus são. Meu avô, que amava óperas, só os chamava de “allegro vivace”. Não sou das que se matam. Sou das que sangram.
E sem Otávio eu sou um sangrar apenas. Sem gritos. Sem feridas. Sem lágrimas. É como depois de um enterro, sabe? Quando você volta do cemitério e se depara com o vazio do morto você não chora. Você fica ali, se esvaziando também. De tudo. Para não virar um oco, você procura os traços do ausente. Os chinelos arrumados de um jeito. As manchas de chá quente na xícara preferida. As frases sublinhadas nos livros. Você fica tentando lembrar de cada maneirismo. O jeito como segurava os talheres, o mastigar, até o respirar você quer reter. E, ao ver que não consegue se lembrar, você se enfurece consigo próprio. Por que diabos você nunca pensou que o tchau da noite passada não fora despedida e sim profecia? Sem Otávio eu vivo nas entrelinhas. No branco entre frases paralelas.
Minha irmã mais velha tem uma filha. Um bebezinho ainda. Ela – a minha irmã – me contou que a criança tinha descoberto os pés, que eles – os bebês – descobrem o corpo aos poucos, cada mês uma parte nova. Sou flagrada a descobrir o meu corpo de novo. Ontem fiquei mais de uma hora olhando para as minhas mãos. Os dedos, as unhas, tudo novo. As linhas da palma. Hoje me deparei com uma pintinha insuspeita na coxa. Desperto dona de uma anatomia. Não sei, porém, o que fazer com esse corpo que se expõe.
As três da tarde, Otávio me doeu. Eu sei que eram três horas porque olhei no relógio. Eu chupava um picolé de coco e era horrível. Otávio odeia coco, diz que, com aquela aparência, aquela casca dura, boa coisa é que não se esconde ali dentro. Eu até gosto de cocada, mas o picolé era muito ruim. Eu ia ter gostado de falar isso para ele. Essas bobagens que o deixavam todo cheio, ele gosta de estar certo.
Otávio ligou para dizer que não me ama. Jogo meus documentos sobre a cama para me certificar de que eu existo. Olho a foto do passaporte. Os vistos antigos. Aeroportos. Reler as anotações é dizer a mim mesma que eu posso traçar um rumo. Uma reta, quem sabe. Posso até ir a Cingapura. Eu tenho documentos, sim, tenho. Eu posso votar. Meu cartão de crédito é dourado. E o meu nome precisa ser abreviado.
Uma vez eu fui ao museu com Otávio. Muito tempo depois, quando ele disse que gostava de mim, eu falei que no meio da sala escura com as esculturas eu queria ter empurrado ele para a parede lisa e ter dado um beijo na boca. Ele respondeu: “Você tá me deixando com tesão”. Só que era pelo telefone. Eu devia ter beijado. Ou não.
Tudo continua igual sem Otávio. O rapaz que recolhe os jornais velhos passa às quartas-feiras. Às terças, eu faço as unhas. Às sextas, sai-se mais cedo do escritório, às quatro horas. Aos sábados, eu vou ao teatro e sempre juro que é a última vez que eu como pizza. Pergunte só às meninas. Tudo continua igual. Só que embaçado.
Um dia as calotas polares vão derreter. Essa cidade vai ser inundada. É claro que eu não serei nem lembrança mais quando isso acontecer. Então, vai se passar muito tempo, séculos até. Um dia um arqueólogo vai descobrir as ruínas da velha cidade. E, ao entrar em um prédio em escombros, ele vai encontrar um potinho de cinzas. As minhas cinzas. O arqueólogo vai achar que aquele artefato daria um bom presente para a moça que ele gosta. Ele imagina até o que vai escrever no cartão: “Do passado para você, meu futuro”. Então ele vai jogar as cinzas fora e guardar a urna.
As cinzas vão voar, soltas, até grudarem na poeira de um carro imundo – como serão os carros imundos do futuro? O dono do carro vai para casa abraçar a mulher e o filhinho. O menino, recém-alfabetizado, vai olhar para a sujeira do veículo e não vai enxergar sujeira, mas tela. Mal sabe ele que são os restos de uma mulher. Aliás, ele só vai perceber as mulheres alguns anos mais tarde, quando tudo nele arder.
O garotinho se aproximará de mim, cinzas, e com a ponta dos dedos traçará seu nome. E não é que ele se chamará Otávio?

9 comentários:

Da Matta disse...

Uau! Essa passagem de tempo no final não é nada menos que linda.

Esse conto é uma pérola, ein. Cada um mais chocante e impactante que o outro. E sempre muito agradável de ler.

Anônimo disse...

Fortíssimo texto, daqueles que nos fazem viajar...
Mais uma vez você surpreende.
Engraçado que este,em particular, veio em um momento bem interessante...

Parabéns!!
Espero continuar apreciando suas obras.. são simplesmente fantásticas!!!

Beeijos, Marco! =)

Fernanda Maria disse...

Texto perfeito!

Quantas realidades um coração apaixonado é capaz de criar e quantas línguas diferentes somos capazes de "entender" na hora do "Eu não te amo mais"? Não sei. Só sei que a imaginação é fértil e que sempre se ouve alemão quando não se quer o fim!

É sempre muito bom te ler!!!

Mil beijos
Nanda

Eleonora Marino Duarte disse...

Escritor,

Gosto muito da forma como você vai e volta na linha do tempo e nas impressões do personagem (com muita elegância, diga-se já). Você nos coloca dentro do caos que é pensar, nos reorganiza no espaço e nos joga na roda outra vez. Acho mesmo que com seus contos você no inspira e expira, deixando tontas idéias e nos obrigando a ler até o fim, para voltarmos a viver com alguma autonomia!

Fantástico!

um grande abraço!

Hudson Pereira disse...

Eu já conheci uns três Otávios na minha vida,com nomes diferentes e rostos distintos. Já me escravizei ao telefone e ao futuro do pretérito. Acho até que estou virando cinzas aos poucos,pois quando bato palmas o ar se enche de poeira.
E mesmo sem meus Otávios, o dias seguem iguais,vou a faculdade,ao cinema,a boite e ao Mc Donalds.
Mas as lembranças dos telefonemas mal-interpretados e dos beijos que não aconteceram me mantêm vivo, não inteiramente lúcido mas terrivelmnete sedento por novos Otávios na minha vida.

Adorei professor!Fez juz a propaganda do conto!

Abraçãooo

KETILEY PESSANHA disse...

simplesmente belo.

beijos de sua aluna de Teoria da Literatura / UERJ

ketileypessanha.blogspot.com

Vicentini; Luiza. disse...

Oi Marco... Estava relendo o menino e as cinzas. É maravilhoso. A palavra é singelo. Dá pra sentir o fim, e a falta do começo concreto, mas o relacionamento abstrato desses que tem por aí, que mesmo abstrado é tão forte q não importa se for só pra ela. Incrível como vc se posiciona mulher, de vítima, e o detalhe da filha do meio é muito bom, os detalhes.. a criança q enxerga tela, tudo... tudo é muito leve e simples. è lindo. Lindo mesmo. Amei. Da segunda vez goistei mais ainda.
bjs

Anônimo disse...

Nossa professor,muito lindo esse texto!Eu adro ler porque parece que eu saio de mim e lendo essa coisa linda eu m senti assim.Me senti dentro dessa mulher.Parabéns e continue assim!

Beijos

Vinicius Luiz disse...

Marco, Esse conto me marcou muito e sempre será um dos meus preferidos.
Escreva e poste seus textos aqui... sinto muita falta! Abraços
Vinícius N. LuiZ